quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

O Passarinho Desconfiado

Eu gosto muito de ler, como todos bem sabem. As férias, em outras palavras, significam para mim ler muito, bastante mesmo. E com esse calor que é tudo, menos agradável, é impossível ler em outro lugar que não na sombra do pátio, se não quiser derreter dentro de casa ou fritar ao sol.
Acontece que depois de ler mais uma parte de um livro novo que eu me dei de Natal, uma coleção de crônicas de um autor daqui do estado, eu estava começando a sentir os sintomas do tédio. Já tinha feito tudo o que podia, e nada me apetecia o suficiente para que eu o fizesse. Isso é normal nas férias, tempo demais pra ocupar com tarefas de menos.
Quando entrava em casa, imaginando com pesar as horas que se seguiriam olhando pro teto com a mente sequiosa de atividade, eis que aconteceu. Um vulto negro perpassou o chão, do meio das minhas pernas diretamente para debaixo do sofá. Nojo e medo tiveram que dividir espaço com o triunfo de uma ocupação que talvez me tomasse um tempo que de outro modo seria desperdiçado: matar aquele rato.
Nunca tinha feito isso antes, mas não devia ser difícil aprender. Uma vassoura seria arma suficiente para acabar com a existência do pobre roedor? Acho que sim. Talvez tivesse que bater mais de uma vez, mas nada que diminuiria a diversão da caçada.
Depois de pegar nos fundos do quintal a vassoura, me dirigi mais uma vez para a sala. Comecei a fazer barulho, pra ver se o bichinho saia de baixo do sofá. Saiu.
Senti todos os meus antepassados moradores de cavernas urrarem dentro de mim “pega ele!”, e meus músculos responderam mais rápido do que de costume, batendo vigorosamente no chão ao redor do meu minúsculo adversário, que heroicamente passou ileso sob os meus ataques, para o outro lado da sala, onde as cadeiras de praia estavam escoradas. Meus antepassados berraram em meus ouvidos “inútil!”. É incrível como as pernas do rato foram rápidas, ainda mais auxiliadas pelas asas batendo, e...
Peraí.
Asas? Sim, durante o reconhecimento do inimigo, dado logo na entrada em casa, meus graus dos óculos me impediram de saber qual era realmente a espécie do bicho em território hostil. Os antepassados olharam perplexos para mim e para o recém descoberto pássaro e foram deitar mais uma vez nos recônditos do meu cérebro, aguardando serem mais uma vez requisitados.
Guardei a vassoura, antes arma, agora apenas símbolo da minha vergonha. O que diriam as pessoas sobre um garoto vil e mesquinho que estava tentando matar um pobre pássaro? Pois é. Mas neste momento se apossara de mim um instinto maternal sobre o pequeno voador, junto da consciência de que ele não poderia ficar dentro de casa.
Tentei me aproximar do bicho, vagarosamente, para não constituir ameaça, mas foi impossível, ele passou pelos meus dedos como se fosse sabão molhado. Por que fugia? Eu queria apenas ajudá-lo, pôr ele pra fora, pra ele poder viver, crescer, constituir família, ensinar aos filhos-pássaro que é perigoso ir às casas dos humanos, etc. Mas não, ele aparentemente não queria ser ajudado. Talvez por que minutos antes eu queria esmagá-lo com a vassoura, mas agora as minhas intenções eram as mais cristalinas do mundo. Era evidente que eu era uma boa pessoa, ele é que só via malícia nos meus olhos.
E nesse medo de mim, fez um balé na sala. Do sofá pro bidê, do bidê pras cadeiras, dali de volta pro sofá, de onde ia pra debaixo da mesa do telefone, e com isso tudo me dando uma canseira daquelas. Mas depois de uma estratégia digna de guerra, que não vou contar aqui, eu consegui obrigá-lo a ir para o canto onde ficava totalmente desprotegido e incapacitado de fugir sem passar por mim. O instinto caçador quase voltara para mim, mas consegui controlá-lo de modo que peguei o pequeno animal com a delicadeza de uma condessa. Levei ele pra fora, abri as mãos, e vi o animal voar para a liberdade, aparentando estar indiferente quanto a eu ter salvo-o. De mim mesmo, mas salvo.
Depois disso tudo, um pensamento veio à tona em minha mente. Às vezes nos comportamos como o passarinho desconfiado, com alguém tentando nos ajudar e nós nos esquivando achando que ele só tem intenções pérfidas conosco. Temos que arriscar, pois nós podemos acabar indo de encontro com a liberdade e com a felicidade que isso nos traz.
Ou podemos ser esmagados com a vassoura de um adolescente mal informado e entediado...

4 comentários:

Anônimo disse...

Vini, os teus textos são demais!
Li quase todos.
Mesmo te conhecendo há tanto tempo e te admirando como eu o faço, eu ainda não havia percebido o quão são grandes os teus dons de escrever e associar a realidade ao imaginário!
Gostei muito de todos os teus textos, principalmente de "A entrevista com Papai-Noel", "Relato dos passeios" e este da qual estou escrevendo.
Estou escrevendo sobre ele porque de todos que li foi o que mais me chamou a atenção (sem contar que eu estava morrendo de preguiça pra comentar todos).
Este me chamou a ateção pelo fato de terminar em uma parábola muito interessante que, na minha opinião, deveria ser corrigida e editada:
"Às vezes nos comportamos como o passarinho desconfiado, com alguém tentando nos ajudar e nós nos esquivando achando que ele só tem intenções pérfidas conosco. Temos que arriscar, pois nós podemos acabar indo de encontro com a liberdade e com a felicidade que isso nos traz.
Ou podemos ser esmagados com a vassoura de um adolescente mal informado e entediado..."

Valeu primo
TU É DEMAIS!!!
Um abraço
Nicolau

Anônimo disse...

cara, pior q nem lembrava da musica, mas faz sentido.... sabe como eh
momentos de reflexao interior...

ajudei um beija flor esses dias, o imbecil voava com a cara no vidro da garagem tentando sair da minha casa... foi mais faci do q o teu passarinho, eu acho

em tempo
para matar ratos:
basta chama-lo em ingles "camon dongo"

abrass

Jader disse...

Cara, gostei do texto.
Prende a tua atenção e isso é um sinal de que tua produção tá evoluindo!

E tua reflexão final é muito boa...
Tirar a moral da história no final de pequenos acontecimentos é sempre bom. Se não souberes o que fazer depois da Liber, poderás cursar filosofia (hihihi...)

Abraço!

Kari disse...

Ah guri!!!!! Estamos cada dia melhor em...

É, ás vezes agimos sim com passarinhos desconfiados, mas pode ser apenas pelo medo de que o outro pegue uma vassoura mais uma vez. Quer dizer, quando a confiança é quebrada, é difícil voltar a acreditar em alguém. E aí difícil se deixar cuidar por ele.
Mas é, ás vezes devemos arriscar, pois isso poderá nos trazer ótimos momentos.

UM beijão