sexta-feira, 28 de setembro de 2007

Conformismo

Eles conversavam alegremente, quando Fulano diz discretamente que precisa ir ao banheiro. Logo após ir, Siclano e Beltrano reiniciam o diálogo habitual sobre quem levará Fulano pra casa.
- Olha, eu não quero ir, ele mora lá no cafundó do Judas. – Diz Siclano.
- Eu também não, já fui assaltado várias vezes lá. – responde Beltrano.
- E o que tu estava fazendo lá?
- Visitando o Fulano.
- Hmm.
- Como disse?
- Eu disse “Hmm”.
- Ah ta.
- Mas não muda de assunto. Eu levo ele, mas tu tem que ir junto. Tenho medo de ir sozinho pra lá.
- Pra quê? A única diferença que eu vou fazer se ir vai ser a de que o ladrão vai poder assaltar um a mais.
- Ta bom, ta bom. É nessas horas que a gente vê quem são os amigos de verdade. Mas depois não quero ver você chorando no meu caixão.
- Chantagem emocional não cola comigo. E se você estiver morto, não vai ver mesmo que quisesse.
- Então deixa. Vamos mandar o Fulano voltar com um daqueles lá ó... – aponta para um moto-taxi - ... e se ele não tiver dinheiro pra pagar a gente paga pra ele.
- Depois ele liga pra dizer se chegou bem.
- Aham. E se ele não ligar?
- Então quer dizer que ele não achou nenhum orelhão funcionando. É muito normal os vândalos destruírem telefones públicos por lá.
- Mas e se ele não ligar por que não chegou bem?
- Daí nós não podemos fazer nada, oras. O problema é dele!
- Então pra que pedir pra ele telefonar se invariavelmente não vamos fazer nada a respeito?
- Pra não quebrar protocolo.
- É, faz sentido.
- E também pega mal se nós não demonstrarmos algum interesse no bem estar dele.
- Aham. Viu, eu estive pensando em uma coisa.
- Isto é novidade pra mim.
- Bobalhão. Ta, eu estive pensando nessas coisas de segurança e etc. Nós não podemos mais sair à noite sem medo de sermos assaltados, nem de levar o nosso amigo em casa por medo de não voltarmos vivos de lá. Isso sem contar os políticos que ficam roubando todo aquele dinheiro que poderia ir para segurança e educação, e, mesmo quando são pegos, mesmo quando seu crime é provado, eles saem livres do tribunal, e tudo acaba em pizza.
- Ah, me desculpe, tirei um cochilo. O que você estava falando?
- Eu estava dizendo que... opa! É de calabresa?
- É sim – disse o garçom.
- Desce uma pra mim – exclamaram os dois em uníssono.
E não falaram mais no assunto.

4 comentários:

Anônimo disse...

Temos alguém enveredando para o caminho dos contos por aqui, ou será apenas um lampejo, como meus escritos quemomentistas?
Hehehe, ficou a tua cara esse diálogo, parece que eu te vejo falando.
Só vou prestar mais atenção quando eu for no banheiro em nossas reuniões, hehehe.

Abraço!

Kari disse...

Adorei, muito bom mesmo.

O conformismo é uma droga mesmo, né? Lembrei de um texto da Marina Colasanti, "Eu sei, mas não devia" que fala sobre nos acostumarmos com algumas situações. É um bom texto...

Um beijão

Anônimo disse...

E o pior é que isso acontece sempre.
Até conosco.
A nossa indiferença frente às barbáries é tamanha que vale uma frase que li há muito tempo e que me marcou:
"A morte de uma pessoa é uma tragédia. A de milhões, uma estatística."

Abraço, irmão (também te considero irmão, ok?)

- Ana Paula - disse...

Bah, que legal!!
Foi tu que escreveu??
A situação que a gente se encontra se tornou tão banal que nem nos damos conta!
E um texto destes nos faz lembrar disso!
Muito legal!